terça-feira, abril 23, 2013

De Cascais aos Açores, 2004, no Tibariaf

20 de Julho de 2004


Depois das dez da manhã o vento caiu muito. Soprava de NE muito fraco, cerca de 10 nós. Estávamos a meio caminho entre o Continente e a ilha de S.Miguel.

Pela primeira vez na viagem içou-se o balão, mas mesmo assim o barco navegava apenas a 3 nós. A fraca velocidade permitiu-nos uma boa pescaria, tendo se pescado dois dourados e um atum que fizeram as delicias das refeições desse dia e seguintes. Permitiu também umas cabeçadas no Atlântico, que estava com uns bons vinte e alguns graus, delicioso, apesar da grande quantidade de caravelas portuguesas que infestavam aquelas aguas.

Aproveitou-se para confeccionar uns bifes de atum com oregãos e muito alho e sumo de limão que acompanhamos com batatinhas porqueiras. Aliás, durante esta refeição o nosso skipper apanhou um espadim azul, lindíssimo, de 2 metros, que por questões de sensibilidade ambiental, a tripulação decidiu devolver ao mar.

Ao jantar confeccionou-se, face à abundância de peixe, uma caldeirada de atum e dourado que estava deliciosa.

Enfim um dia muito calmo, nada prenunciava o dia seguinte.

Como o meu quarto era o das quatro da manhã às oito, deitei-me cedo.

21 de Julho de 2004

Ainda não eram duas da manhã acordaram-me porque uma das baterias fervia. O rádio SSB tinha sido ligado sem grandes cuidados e na placa de isolamento de cargas tinha sido queimado um díodo, tendo o regulador de tensão deixado de funcionar. Lá juntei as minhas qualidades de engenheiro electrotécnico às de marinheiro e resolvi, enfim, remediei, o melhor que pude, o problema, já com a sensação que o meu amigo José Angelo me tinha descrito antes da largada, de estar dentro de uma máquina de lavar roupa, das antigas.

Na verdade o mar começava a alterar-se. O barómetro tinha descido para os 1001 mbar e o vento crescera.

Até cerca das 11 horas UTC fizemos vela, e de muito luxo. O vento tinha rodado para SW e tinha já força 4 ou 5, o mar era do mesmo quadrante com 2 a 3 metros.

Chegamos aos 6 nós de odómetro, em bolina cerrada, com o mar sempre a crescer e o barómetro a descer.

Chamamos pelo VHF a flotilha que nos acompanhava, mas só o Maibar nos respondeu. Já há dois dias que tínhamos perdido o contacto rádio com o resto da flotilha.

Nessa altura éramos uns fortalhaços. Mar a crescer e nós à vela.

Mas o mar cresceu mais e o barómetro desceu mais,  aos 998 mbar. Era agora de cavado a grosso, trapalhão.

De duas em duas horas comunicávamos com o Maibar, que se situava a cerca de 20 milhas mais ao Norte.

Não se almoçou.

Dentro do Tibariaf andava tudo pelos ares. Nada estava no sitio. O mar era agora grosso de 6 metros com umas ondas de vez em quando a passar os 8 metros, o vento de força 6 e 7. Íamos com a vela grande só com um metro de fora e a genoa com igual área, centrada a meia nau, só para equilibrar, e avançávamos a motor, muito devagar, a caturrar.

Por volta das 16 horas UTC o Maibar comunicou-nos que tinha conseguido falar com o Comandante José Inácio e que, segundo este, a depressão em que nos encontrávamos se dirigia para NE, pelo que nos aconselhava a rumar a Sul.

Não foi preciso ouvir duas vezes. Saímos dos 270 em que navegávamos e tomamos o rumo 190.

Ao cair da noite o barómetro começou a subir, estavam agora 1005 mbar, e o mar a descer. Mesmo assim ainda de 4 metros e cavado.

Mas duas refeições sem nada é que não.

Prepararam se então uns ovinhos cozidos, com agua de cebola para ficarem castanhinhos, que se jantaram com prazer e com duas garrafas de vinho tinto de Torres Vedras que o nosso Skipper fez o favor de trazer para nosso gáudio.

Às 23 horas retomámos os 270 de rumo. O Maibar, com um companheiro magoado (felizmente não era nada) meteu máquina a fundo e rumou directo a Ponta Delgada.

Entre nós e a Ponta do Arnel agora só havia o imenso azul.

24 de Julho de 2004

O mar já tinha baixado muito, era agora bonançoso. A tempestade já tinha passado.

Ao sexto dia de mar, tínhamos largado de Cascais no domingo passado e navegado mais de 600 milhas, já estávamos completamente habituados às rotinas diárias do nosso veleiro.

Ao fim da tarde avistamos o Harmony na nossa amura de estibordo, a cerca de 5 milhas. Estava apenas com a genoa e navegava muito pelo norte. Creio que contornou pelo norte S.Miguel para entrar em Ponta Delgada por Oeste.

Por nós mantivemos o rumo, mais para Sul, embora o vento não ajudasse muito esta opção, mas era o caminho mais directo.

Ao jantar confeccionou-se uma magnifica ‘ esparguetada ’ de atum, com tomates, pimentos e ovos, receita recordação de uma viagem a Utrech há muitos anos.

O meu quarto era o das 20 às 24 pelo que depois do jantar permaneci no poço para continuar o meu serviço. Os meus companheiros de viagem, porque iam ‘ pegar ao serviço ’ durante a noite, foram ambos descansar.

Na imensidão do mar sabia que por volta das 23 e 30 deveríamos estar a 25 milhas da ponta do Arnel e, como o alcance do farol era de 25 milhas, deveria ser naquele instante que, depois de 6 dias de mar, veríamos terra pela primeira vez.

E assim foi. Às 23h30 do dia 24 de Julho vi, sozinho no poço, o relampejar do foco de luz do Arnel a cortar o escuro da noite.

Sensação única aquele instante. Não que a viagem fosse desagradável ou que não estivesse a tirar um enorme prazer daquela situação, mas, apesar das tecnologias de orientação disponíveis, ao fim de 700 milhas sem pontos de referencia, avistar a ponta do Arnel no preciso momento e no preciso local que se programou, é único.

Ainda me mantive ‘de serviço’ até às 2 da manhã, com a excitação da aproximação a terra. Cada minuto, cada milha, a visibilidade melhorava. Já via claramente os contornos da parte oriental da ilha. Estávamos a chegar. Conseguíramos fazer 700 milhas sem problemas, com muito livros lidos, muitas refeições partilhadas com muito prazer, muitos quartos de vigília, muito mar para trás de nós.


Entre Angra e a Horta

Angra do Heroísmo é a cidade mais linda onde alguma vez estive.

Dois dias de descanso a visitar a cidade, sempre debaixo de chuva e sol e por vezes muito vento.

À hora marcada o fiscal da comissão de regata veio selar-nos o engate do motor. A partir dali apenas podíamos ligar a máquina para carregar baterias, se engatássemos quebraríamos o selo e seriamos desclassificados.

Saímos da marina a reboque até fora da barra, onde içamos as velas e ficamos a fazer bordos, à espera da largada.

A bóia de desmarque, a barlavento, estava a menos de cem metros da ilha e exigiu dois ou três bordos para a contornarmos.

A parte regateira da flotilha engalfinhou-se nessa bóia. Nós, calmamente, contornámos no fim de todos. A regata era até à Horta, 70 ou 80 milhas conforme a opção de rumo, não valia a pena passar ali com a ‘molhada’.

As opções de rumo eram pelo canal, entre as ilhas de S. Jorge e do Pico, ou pelo Norte. Pelo Norte eram mais 10 a 15 milhas, pior mar, mas....mais vento.

Apenas 4 embarcações optaram pelo Norte.

Pela nossa parte vínhamos em regata especial com o ‘Gávea’ do Almirante Fausto Abreu, que trazia na sua tripulação um filho de Aveiro, neto do Capitão Guerra, meu particular amigo e companheiro do meu pai nas lides do bacalhau na Terra Nova. Com o Gávea havia ainda um leitão em jogo.

A nossa opção pelo Norte foi a acertada. O mar estava mauzinho, 4 metritos de NW mas o vento estava de luxo. De NW também, força 6.

E lá seguimos em bolina folgada a 9 nós de odómetro.

À meia noite estávamos na Ponta dos Rosais, extremo ocidental da ilha de S. Jorge. O vento caíra um pouco, e, quando tomamos o rumo do Faial, a popa arrasada em que seguíamos tornou a navegação incómoda.

À medida que a noite avançava o vento ia caindo e aquelas ultimas 15 milhas foram penosas, com a retranca a balançar de bordo em bordo, com ensaios de mareação para ambos os bordos.

A verdade é que quase não avançávamos.

Não sabíamos, mas nessa altura apenas nós e o Gávea estávamos em regata. À nossa frente entraram duas embarcações e todos os que optaram pelo canal tinham desistido, excepção para o Gávea, por falta de vento.

Às 6 da manhã estávamos a 5 milhas da Horta e comuniquei via rádio a nossa posição à comissão de regata, como era nossa obrigação.

Às 8 estávamos ainda a 3 milhas da Horta com sucessivas cambadelas da retranca. Era difícil continuar, o barco estava a sofrer e ainda tinha  de fazer 900 milhas até ao continente.

Desistimos. Comunicamos via rádio que iríamos ligar o motor e assim fizemos, a 3 milhas da Horta e do Peter’s.

Só soubemos depois que praticamente toda a flotilha tinha desistido e que o Gávea ainda estava no Canal, a calcar ovos, à espera de vento.

A entrada na Horta foi triunfal. Foi o culminar daquela viagem. Eram 8 da manhã do dia 31 de Julho de 2004.

O João Luís degolou uma garrafa de champanhe na névoa ligeira, brindámos duas e três vezes, cumprimentamo-nos, atracamos e fomos dormir.

O Peter’s e os seus gins ficavam para dali a bocado.........

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