Da Revista de Marinha e do Comandante Vasco Galvão, companheiro de viagem no Cruzeiro da ANC aos Açores de 2004, o texto em baixo, que li com muito agrado.
JOSÉ
FRANCISCO
.
Conheci o Senhor José Francisco há muitos anos
em Vila Nova de Milfontes, minha terra de adopção. Tive o prazer de privar com
ele, quer a bordo de O VENTO, quer em muitos serões que passei na sua casa,
ouvindo as suas apaixonantes histórias passadas no mar e não só. As suas
narrativas eram uma lição de vida.
Começou a sua vida de mar em finais do Séc. XIX com tenra idade, como moço de convés
embarcado nos Iates e Palhabotes que navegavam exclusivamente à vela, sem
qualquer motor/gerador e faziam cabotagem na nossa costa, a maioria
pertencentes a armadores locais. Contou-me que a viajem rio acima até Odemira,
era à vela com ventos dominantes de NW
de feição, aproveitando a maré enchente. Pelo contrário, a descida do Mira com
ventos pela proa, era feita em duas marés com um bote a remos a rebocar à proa,
ou à sirga, isto é, com cabos passados a terra com os tripulantes a alarem à
mão!!!!! Saliento que o curso do Mira se desenvolve na direção SW/NW, pelo que
com os ventos dominantes de NW era viável a navegação à vela até Odemira. Esses
pequenos navios de cabotagem (tonelagem inferior a 100 tons), “importavam” de
uma forma geral produtos que não era possível obter localmente (mercerias,
conservas, tecidos, petrólio para iluminação, etc) e “exportavam” produtos
locais (cortiça, cereais e outros).
No 5 de Outubro de 1910,José Francisco estava a
bordo na Doca do Terreiro do Trigo em Lisboa, carga embarcada e pronto para
zarpar para VNMilfontes. O reboliço foi tal que largaram somente dois dias
depois, tendo a tripulação levado até aquele porto, a notícia da implantação do
novo regime.
Já nos anos 20, embarcou como clandestino num
navio para os EUA, onde chegou naturalmente como muitos emigrantes com uma mão
à frente e outra atrás!!! Aí fez de tudo um pouco para sobreviver. A dada
altura trabalhou num circo com um Cow Boy fazendo o número do Guilherme Tell,
ou seja, José Francisco punha uma maçã na cabeça e o Cow Boy com um tiro de
revólver, partia a maçã!!!!!!!!
Entretanto, aprendeu a ler e escrever (em
Inglês, claro) tendo chegado a estudar para Piloto cujo curso nunca concluiu,
mas contou-me, sabia marcar pontos na carta com leituras de sextante do Sol e
das Estrelas.
Era engraçadíssimo, pois falava correntemente
Inglês/Americano, mas com um leve sotaque alentejano (Okay, pronunciava
Óquêiii).
Mais tarde conseguiu um dos seus grandes objectivos,
fazer carreira na Marinha Mercante Americana, onde chegou a Contra-Mestre.
Contou-me que num Navio a carvão onde
embarcara, um dos Fogueiros passava a vida em rixas com os seus colegas,
provocando discussões e lutas terríveis (à navalhada). Os colegas fogueiros a certa
altura, fartos do mau ambiente que ele provocava, não estiveram com meias
medidas. Pegaram nele e atiraram-no para dentro da fornalha!!!! Devo esclarecer
que José Francisco era tripulante de convés e nada tinha a ver com os fogueiros
da Casa da Máquina. Também nesse tempo acontecia por vezes o recrutamento de
tripulantes entre marginais que deambulavam nos portos por esse mundo fora. O embarque
era a forma rápida e eficaz de fugirem às autoridades que os procuravam.
Já como Contra-Mestre de um Navio Petroleiro em
plena 2ª Guerra, adoeceu, baixou ao hospital e o Navio zarpou sem ele. A meio
do Atlântico foi torpedeado por um U Boot. O Navio foi ao fundo tendo morrido
todos os tripulantes, e desta forma José Francisco lá se safou!!!!!
Quando o conheci em VNova, já estava Reformado
e naturalizado Americano. Recebia regular e pontualmente a sua pensão de
reforma da Companhia Armadoar Americana onde trabalhara.
Na década de 60, um triste episódio. Estava à
janela do quarto com sua Mulher, Francisca Bezerra também natural de
VNMilfontes numa pensão no Rossio em Lisboa, quando a Polícia tenta controlar
uma manifestação de estudantes. Uma bala perdida mata a sua Mulher que estava a
seu lado!!!!
Novo projecto, o seu veleiro O VENTO.
Com o seu vasto conhecimento e experiência de
mar, com muito empirismo à mistura como era seu apanágio, executa um modelo à escala
numa barra de sabão. Entregou o modelo num estaleiro na Amora na margem
esquerda do Tejo e terá dito: Quero
isto, mas com 7.5mts de comprimento!!!!
E assim foi, passado poucos meses, sulcava os
mares da nossa costa, em Solitário a maioria das vezes, a bordo de O VENTO que
armava em CUTTER, gabando-se de não ter a bordo outra energia, além da eólica e
do petróleo para os faróis de navegação e iluminação da cabine. Por vezes
passava dias seguidos no mar sem ninguém saber do seu paradeiro, pois não tinha
rádio a bordo (telemóvel só muitas décadas depois!!!!!).
Perguntei-lhe:
- Sr. Zé Francisco, e quando está cansado, o
que faz?
- Simples, passo para fora da carreira dos
vapores (como eram conhecidos pelos mais velhos, os corredores de tráfego
marítimo da nossa costa), ponho de capa com o pano aquartelado (manobra das
velas em que o barco fica quase imobilizado, apenas com um reduzidíssimo
seguimento avante, 1 a 2 nós no máx.) e vou dormir!!!
Várias vezes tive o prazer de navegar com ele.
O último grande projecto era atravessar o
Atlântico em solitário e morrer nos EUA. Um problema de visão não lhe permitiu
concretizar este projecto. Contudo, idealizou e concretizou um “telecomando”
por meio de cabos (Gualdropes, adriças, carregadeiras e outros) que lhe
permitiam fazer toda a manobra em solitário, sentado nos vaus do mastro. Era
vê-lo na Baía de Cascais, em finais da década de 70 e já com mais de 80 anos de
idade, a velejar sentado nos vaus sempre aplaudido pelos entusiastas do Clube
Naval e por outros velejadores que por ali passavam.
Em 1976, era eu um jovem Cadete da Escola
Naval, e fui numa Viagem de Instrução ao Bi-Centenário da independência dos EUA
em Nova York. Dias antes da largada, fui ter com José Francisco e perguntei-lhe
se queria algum “mandado” (como se diz no Alentejo) para NY. Pediu-me que
levasse a foto dele a bordo de O VENTO (igual à que aqui publicamos com o nosso
amigo em solitário sentado nos vaus, demandando a saída da barra de
VNMilfontes), para oferecer à companhia
de navegação onde trabalhara décadas atrás. Foi com o maior dos prazeres que
lhe satisfiz este pedido. Assim lá fui ao escritório em Wall Street e fiz a
entrega ao funcionário, que embora não conhecesse Mr. Francisco, era ele que
mensalmente lhe processava a pensão de reforma.
Tempos depois, e incapacitado de concretizar o
projecto da travessia Atlântica, vende O VENTO.
Um dia, bati-lhe à porta de casa e convidei-o
para subirmos o Mira, a bordo do meu ALTAIR, um pequeno veleiro com 5.90 mts, e
disse-me:
- Oh! Vasco, agradeço muito o convite, mas
estou muito velho, já me custa muito.
-Oh! Senhor Zé Francisco, velhos são os trapos
venha daí!!!!
E assim foi, embarcámos e de imediato
passei-lhe a cana de leme para as mãos. Impressionante o conhecimento empírico
que tinha do Rio, dizia-me:
- Vasco, vamos chegar mais aquela margem que o
vento ali encana corgo abaixo e vamos apanhar uma boa refrega.
- Vasco agora encostamos aquela ponta de terra,
que faz ali uma revessa que nos vai dar um empurrãozinho.
E assim fomos rio acima até à Casa Branca
(cerca de 1/3 da viagem por rio Milfontes/Odemira) e voltámos sempre à vela.
Tive o privilégio de ter sido o último amigo com quem o Zé Francisco navegou a
vela.
No início da década de 80, estava eu embarcado
num Patrulha na Madeira e recebi com tristeza a notícia da sua partida!!!!
A última vez que vi O VENTO na água, foi há uns
anos amarrado à boia na Baía de Cascais, já sem a cabine. Entretanto, fiz
alguns contactos entre velejadores e amigos de VNMilfontes e tive a agradável
informação de que O VENTO continua “vivo”. Com efeito, o seu actual
proprietário, António Lobbert conhecido velejador de Cascais, está a
recuperá-lo no estaleiro do Sr. Jaime Costa em Sarilhos Pequenos. Este
estaleiro que trabalha exclusivamente em madeira, prima pelo seu trabalho
construindo e reparando muitas embarcações tradicionais do Tejo.
Que contente vai ficar o Senhor José Francisco,
vendo “lá de ciama” o seu VENTO em reparação no estaleiro imaginado-o de novo e
em breve a sulcar as nossas águas!!!
José Francisco, Grande Marinheiro e Grande
Homem com quem muito aprendi, não de só de mar, mas também da vida.
Vila Nova de Milfontes, 25 de Outubro de 2016
Vasco Galvão