quarta-feira, janeiro 13, 2021

Uma jornada na nossa Ria

 Texto de Alberto Hélio que aqui reproduzo com a devida autorização e vénia





Para que não restem dúvidas de que amizade não se circunscreve a um espaço, mas tendo o espaço identidade, não gosta que lhe troquem o nome... exatamente como as pessoas.
Dedico a
Senos Fonseca
o que a memória me permitiu escrever de uma das muitas aventuras que nos foram comuns, só para relembrar que a vida não é sempre a preto e branco.
Este ilhavense por quem tenho uma singular estima, tem pugnado pela sua terra como poucos gafanhões o têm feito pela Gafanha.
Um forte abraço para o João e para si também.
Pronto... o homem além do andorinha "Zinda", do catamaran "Easy Cat" construído a bricolar na garagem, do bote "Chicharro", da bateira que não me lembro do nome, e do "Tolan" - uma baleira em fibra que apanhámos a arrolar -, deu-lhe na telha que tinha de comprar um moliceiro...
Num sábado reuniu a tenebrosa tripulação - Os Asas de Portugal da Casa do Bico - com destino a Pardilhó onde a respeitosa embarcação habitualmente varava.
Numa breve "workshop" ministrada pelo ex-barqueiro, apressadamente nos adaptámos ao maneio e nomenclatura da palamenta.
Ao zarpar pela manhã de Pardilhó rumo à Biarritz, borbulhava pela ré o velho moliceiro um murmúrio de despedida ao lugar que o viu nascer.
O casco denunciava excessivas camadas de pez negro e muito calafeto. Já não era nenhum menino. Mas haveria de se familiarizar com irrequietude da marinhagem da Casa do Bico.
Comandava a nau Senos da Fonseca. Da tripulação faziam parte o seu filho João, os sobrinhos Picados, eu e a minha filha Doroteia, o João Bichão e o seu filho Pedro, o Fred, o Vitor Guimarães, e não me lembro se faltará mais alguém?!
A segurança e apoio ao "paquete" era feita pelo "andorinha" que o Bichão tinha adquirido havia pouco tempo no Carregal.
Contra a corrente, tocado por uma ligeira brisa de noroeste, arrastava-se a embarcação naquele plácido dia de verão.
No Canal de São Jacinto, já para sul da Ponte da Varela, acendeu-se o fogareiro nas painas entre o castelo da proa e a tóstia. Sem interromper a singradura tratou-se do almoço - uma petingada assada na brasa com broa, guarnecida com uma colorida salada bem azeitada e avinagrada.
Comeu-se à moda antiga, com a petinga a pingar sobre a broa e a garfar a salada servida num único alguidar.
Que manjar não era a comida a bordo, temperada com os ares da ria.
Existia ainda o navio-motor bacalhoeiro Rainha Santa, porém em outras funções. Estava agora vocacionado para a restauração, encalhado a sul da Torreira. Deixámo-lo por estibordo ao lusco-fusco com a vela a panear, ajudados pela vazante e pelo auxiliar fora de borda.
O ânimo a bordo era elevado embora os mais novos dessem sinais de algum desconforto por estarem longe de casa e das mães.
- Oh rapaziada é hora de preparar o jantar! Ordenou o comandante.
Tacho ao lume com água da ria, cebola, rodelas de batata albardada, por cima uma generosa camada de petinga da mesma família da que foi servida ao almoço e um ramalhete de salsa.
A manobrar no cagarete o comandante Senos da Fonseca ia indagando da evolução do rancho. Não havendo luz a bordo, com o isqueiro acendia um jornal, aliviava o testo do tacho e observava o andamento da fervura, não sem que alguma cinza do jornal também condimentasse a caldeirada.
Cada vez que se destapava o tacho notava em Vitor Guimarães (filho) muita curiosidade sobre o que se estava a cozinhar.
- Então, mas isso é uma caldeirada? Perguntava ele.
- E o que é aquilo por cima do peixe? Referindo-se ao ramalhete da salsa.
- É moliço! Respondi eu ao "fraca tripa" que ao almoço se tinha baldado, por não ter a bordo as mordomias de casa, como talher completo e o pratinho individual. Soube que convenceu o Fred a levá-lo no andorinha ao "snack" do Rainha Santa, onde matou a galga, por achar estranho todos comerem a salada do mesmo alguidar.
Neste arrolado, enxergava-se agora pela amura de estibordo a cidadela bem iluminada da Pousada da Ria, dando indícios de festança. Na aproximação, distinguia-se um casal à varanda do primeiro andar que vestidos daquela maneira, denunciavam tratar-se de casamento.
Foi por aqui, que Senos da Fonseca a pretexto de atesto dos tanques da aguada, mandou preparar as retenidas e os lançantes para atracação.
Depois de bem consolidada a amarração, perfilou-se a equipagem sobre as falcas de estibordo observados com espanto por inúmeros convivas dos noivos.
Uma ocasião festiva merecia o nosso empenho canoro. E à boa maneira de Piçarra também os "Asas de Portugal da Casa do Bico" se esmeraram ao evocar Ramalho, que não o Eanes.
Ramalho Ramalho
Ramalho és tu.
Vai chamar Ramalho
ao olho do cu!
Aplausos efusivos vindos do balcão superior davam conta do agrado pela nossa prestação, que só ao cabo de vários "encores" se foram esmorecendo.
Com a devida autorização fomos desembarcando para a zona ajardinada nas traseiras da Pousada, onde iria decorrer o jantar.
Acontece que as batatas ainda não estavam cozidas e restava pouca água no tacho. Perguntei a uma empregada onde havia água e ela indicou-me o sistema de rega por aspersão que ainda espingalhava por aquela hora. Na minha pachorra agarrando o tacho pelas orelhas dançámos eu e ele à roda do bico aspersor mendigando umas gotinhas de água para compor a caldeirada.
Entretanto a João Fonseca chegava-lhe o cheiro a doçura.
- Eh Hélio! Quero bolo da noiva.
- Tu abispa-te João! Vais por essa porta e se encontrares alguém, pede-lhe bolo da noiva... que eles dão!
Disse-lhe aquilo para o dissuadir... mas na volta lá vinha o João a manducar do bolo desejado?!
Ainda não refeito desta, vejo uma empregada a caminho do canil, com uma travessa acaramulada de pedaços de leitão, daqueles que havendo opção ninguém quer.
Enchi o peito de descaramento e perguntei:
- Olhe senhora posso saber para onde leva os ossinhos?
- É pros cães! Respondeu-me.
- Béu! Béu! Béu! Bem ladrava eu... mas sem a sorte do João Fonseca.
Estava a caldeirada pronta.
Tacho no meio da relva e os "índios" todos à roda dele. Sem louvados, deu-se início à janta, todos a comer do tacho à boa maneira política.
À minha esquerda, debicava com algum fastio o Vitor Guimarães da "caldeirada de moliço". Reparei que fazia incursões em "slide" à esquerda e à direita da fatia que lhe estava destinada no tacho, na busca da petinga em detrimento da batata.
- Eh amigo ou comes a eito ou quando invadires o meu espaço, garfo-te ! Disse-lhe.
Como era a primeira vez que o rapaz tinha embarcado, havia de perder o pelo.
No fim da refeição correu tudo bem, agradecendo o comandante Senos da Fonseca pela hospitalidade, e quando largámos lá estavam os convivas no primeiro balcão a desejar-nos boa viagem.
Todos a bordo, e lá íamos com a maré auxiliados pelo fora de borda e de vela içada que outra coisa não fizera senão panear.
Caíra a noite e o vento que tinha tirado folga nesse dia.
Foram-se então recolher para os aposentos do castelo da proa os mais miúdos; o João Fonseca, o Pedro Bichão e a minha filha Doroteia.
Nem Senos da Fonseca ao adquirir o moliceiro imaginaria, fosse bonificado por aquela plácida noite luarenta e estrelada, que nos alumiava o caminho.
Antes de São Jacinto já a água levava mexa para a Barra e na confluência do Canal de São Jacinto com o Canal Principal havia ondulação cavada, embora redonda. Mandava o bom senso que corrente perde-se fulgor para prosseguir.
Arribámos então à baía de São Jacinto. Os miúdos dormitavam confortavelmente instalados, e os graúdos desembarcaram.
Procuraram então os piratas avidamente um café que estivesse aberto na Ilha do Tesouro. Não é fácil passar um dia sem um cheirinho a cafeína. Creio que fomos parar ao Gato Negro junto à BA7.
À entrada estava uma menina toda redondinha - um borracinho - que não escapou a um piropo que lhe dirigi:
- És boa cumó milho!
- Pois sou mas não é pros teus beços! Surpreendeu-me ela.
E lá fomos repor o teor de cafeína e de chiripiti.
Quando o comandante achou por bem, largámos para a travessia da península de São Jacinto para a península da Gafanha.
Quando nos aproximámos do Canal da Lancha no Forte acerbemo-nos do alarido e do bracejar das mulheres e mães que aguardavam desesperadamente pelos seus, devido ao adiantado da hora.
Cena semelhante só mesmo antigamente na entrada dos navios bacalhoeiros.
Pelas quatro da matina ficou acomodado o velhinho moliceiro no seu novo ancoradouro, na Biarritz, junto à Casa do Bico, onde foi feliz até alquebrar pelo dorso.