segunda-feira, dezembro 04, 2017

José Francisco


Da Revista de Marinha e do Comandante Vasco Galvão, companheiro de viagem no Cruzeiro da ANC  aos Açores de 2004, o texto em baixo, que li com muito agrado. 



JOSÉ FRANCISCO
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Conheci o Senhor José Francisco há muitos anos em Vila Nova de Milfontes, minha terra de adopção. Tive o prazer de privar com ele, quer a bordo de O VENTO, quer em muitos serões que passei na sua casa, ouvindo as suas apaixonantes histórias passadas no mar e não só. As suas narrativas eram uma lição de vida.

Começou a sua vida de mar em finais do Séc. XIX  com tenra idade, como moço de convés embarcado nos Iates e Palhabotes que navegavam exclusivamente à vela, sem qualquer motor/gerador e faziam cabotagem na nossa costa, a maioria pertencentes a armadores locais. Contou-me que a viajem rio acima até Odemira, era à vela com ventos dominantes de  NW de feição, aproveitando a maré enchente. Pelo contrário, a descida do Mira com ventos pela proa, era feita em duas marés com um bote a remos a rebocar à proa, ou à sirga, isto é, com cabos passados a terra com os tripulantes a alarem à mão!!!!! Saliento que o curso do Mira se desenvolve na direção SW/NW, pelo que com os ventos dominantes de NW era viável a navegação à vela até Odemira. Esses pequenos navios de cabotagem (tonelagem inferior a 100 tons), “importavam” de uma forma geral produtos que não era possível obter localmente (mercerias, conservas, tecidos, petrólio para iluminação, etc) e “exportavam” produtos locais (cortiça, cereais e outros).

No 5 de Outubro de 1910,José Francisco estava a bordo na Doca do Terreiro do Trigo em Lisboa, carga embarcada e pronto para zarpar para VNMilfontes. O reboliço foi tal que largaram somente dois dias depois, tendo a tripulação levado até aquele porto, a notícia da implantação do novo regime.

Já nos anos 20, embarcou como clandestino num navio para os EUA, onde chegou naturalmente como muitos emigrantes com uma mão à frente e outra atrás!!! Aí fez de tudo um pouco para sobreviver. A dada altura trabalhou num circo com um Cow Boy fazendo o número do Guilherme Tell, ou seja, José Francisco punha uma maçã na cabeça e o Cow Boy com um tiro de revólver, partia a maçã!!!!!!!!


Entretanto, aprendeu a ler e escrever (em Inglês, claro) tendo chegado a estudar para Piloto cujo curso nunca concluiu, mas contou-me, sabia marcar pontos na carta com leituras de sextante do Sol e das Estrelas.
Era engraçadíssimo, pois falava correntemente Inglês/Americano, mas com um leve sotaque alentejano (Okay, pronunciava Óquêiii).

Mais tarde conseguiu um dos seus grandes objectivos, fazer carreira na Marinha Mercante Americana, onde chegou a Contra-Mestre.

Contou-me que num Navio a carvão onde embarcara, um dos Fogueiros passava a vida em rixas com os seus colegas, provocando discussões e lutas terríveis (à navalhada). Os colegas fogueiros a certa altura, fartos do mau ambiente que ele provocava, não estiveram com meias medidas. Pegaram nele e atiraram-no para dentro da fornalha!!!! Devo esclarecer que José Francisco era tripulante de convés e nada tinha a ver com os fogueiros da Casa da Máquina. Também nesse tempo acontecia por vezes o recrutamento de tripulantes entre marginais que deambulavam nos portos por esse mundo fora. O embarque era a forma rápida e eficaz de fugirem às autoridades que os procuravam.

Já como Contra-Mestre de um Navio Petroleiro em plena 2ª Guerra, adoeceu, baixou ao hospital e o Navio zarpou sem ele. A meio do Atlântico foi torpedeado por um U Boot. O Navio foi ao fundo tendo morrido todos os tripulantes, e desta forma José Francisco lá se safou!!!!!

Quando o conheci em VNova, já estava Reformado e naturalizado Americano. Recebia regular e pontualmente a sua pensão de reforma da Companhia Armadoar Americana onde trabalhara.


Na década de 60, um triste episódio. Estava à janela do quarto com sua Mulher, Francisca Bezerra também natural de VNMilfontes numa pensão no Rossio em Lisboa, quando a Polícia tenta controlar uma manifestação de estudantes. Uma bala perdida mata a sua Mulher que estava a seu lado!!!!

Novo projecto, o seu veleiro O VENTO.

Com o seu vasto conhecimento e experiência de mar, com muito empirismo à mistura como era seu apanágio, executa um modelo à escala numa barra de sabão. Entregou o modelo num estaleiro na Amora na margem esquerda do Tejo  e terá dito: Quero isto, mas com 7.5mts de comprimento!!!!
E assim foi, passado poucos meses, sulcava os mares da nossa costa, em Solitário a maioria das vezes, a bordo de O VENTO que armava em CUTTER, gabando-se de não ter a bordo outra energia, além da eólica e do petróleo para os faróis de navegação e iluminação da cabine. Por vezes passava dias seguidos no mar sem ninguém saber do seu paradeiro, pois não tinha rádio a bordo (telemóvel só muitas décadas depois!!!!!).

Perguntei-lhe:

- Sr. Zé Francisco, e quando está cansado, o que faz?
- Simples, passo para fora da carreira dos vapores (como eram conhecidos pelos mais velhos, os corredores de tráfego marítimo da nossa costa), ponho de capa com o pano aquartelado (manobra das velas em que o barco fica quase imobilizado, apenas com um reduzidíssimo seguimento avante, 1 a 2 nós no máx.) e vou dormir!!!

Várias vezes tive o prazer de navegar com ele.
O último grande projecto era atravessar o Atlântico em solitário e morrer nos EUA. Um problema de visão não lhe permitiu concretizar este projecto. Contudo, idealizou e concretizou um “telecomando” por meio de cabos (Gualdropes, adriças, carregadeiras e outros) que lhe permitiam fazer toda a manobra em solitário, sentado nos vaus do mastro. Era vê-lo na Baía de Cascais, em finais da década de 70 e já com mais de 80 anos de idade, a velejar sentado nos vaus sempre aplaudido pelos entusiastas do Clube Naval e por outros velejadores que por ali passavam.



Em 1976, era eu um jovem Cadete da Escola Naval, e fui numa Viagem de Instrução ao Bi-Centenário da independência dos EUA em Nova York. Dias antes da largada, fui ter com José Francisco e perguntei-lhe se queria algum “mandado” (como se diz no Alentejo) para NY. Pediu-me que levasse a foto dele a bordo de O VENTO (igual à que aqui publicamos com o nosso amigo em solitário sentado nos vaus, demandando a saída da barra de VNMilfontes),  para oferecer à companhia de navegação onde trabalhara décadas atrás. Foi com o maior dos prazeres que lhe satisfiz este pedido. Assim lá fui ao escritório em Wall Street e fiz a entrega ao funcionário, que embora não conhecesse Mr. Francisco, era ele que mensalmente lhe processava a pensão de reforma.

Tempos depois, e incapacitado de concretizar o projecto da travessia Atlântica, vende O VENTO.

Um dia, bati-lhe à porta de casa e convidei-o para subirmos o Mira, a bordo do meu ALTAIR, um pequeno veleiro com 5.90 mts, e disse-me:

- Oh! Vasco, agradeço muito o convite, mas estou muito velho, já me custa muito.

-Oh! Senhor Zé Francisco, velhos são os trapos venha daí!!!!

E assim foi, embarcámos e de imediato passei-lhe a cana de leme para as mãos. Impressionante o conhecimento empírico que tinha do Rio, dizia-me:

- Vasco, vamos chegar mais aquela margem que o vento ali encana corgo abaixo e vamos apanhar uma boa refrega.

- Vasco agora encostamos aquela ponta de terra, que faz ali uma revessa que nos vai dar um empurrãozinho.

E assim fomos rio acima até à Casa Branca (cerca de 1/3 da viagem por rio Milfontes/Odemira) e voltámos sempre à vela. Tive o privilégio de ter sido o último amigo com quem o Zé Francisco navegou a vela.

No início da década de 80, estava eu embarcado num Patrulha na Madeira e recebi com tristeza a notícia da sua partida!!!!
A última vez que vi O VENTO na água, foi há uns anos amarrado à boia na Baía de Cascais, já sem a cabine. Entretanto, fiz alguns contactos entre velejadores e amigos de VNMilfontes e tive a agradável informação de que O VENTO continua “vivo”. Com efeito, o seu actual proprietário, António Lobbert conhecido velejador de Cascais, está a recuperá-lo no estaleiro do Sr. Jaime Costa em Sarilhos Pequenos. Este estaleiro que trabalha exclusivamente em madeira, prima pelo seu trabalho construindo e reparando muitas embarcações tradicionais do Tejo.

Que contente vai ficar o Senhor José Francisco, vendo “lá de ciama” o seu VENTO em reparação no estaleiro imaginado-o de novo e em breve a sulcar as nossas águas!!!

José Francisco, Grande Marinheiro e Grande Homem com quem muito aprendi, não de só de mar, mas também da vida.

Vila Nova de Milfontes, 25 de Outubro de 2016


Vasco Galvão

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